O lúdico nas aulas de natação infantil: (…) afinal, de que lúdico estamos falando? – PARTE 02

O lúdico nas aulas de natação infantil: (…) afinal, de que lúdico estamos falando?

Prof. Dr. Leonardo Graffius Damasceno

 

2ª parte… continuação

Assumir o lúdico, como afirma Bracht (2003) é, de certa forma, negar o mecanicismo próprio da racionalidade técnica e da razão científica presente na concepção mecanicista do corpo humano que tanto fundamentou a intervenção da educação física. Nesse sentido, não seria demasiado apontar a cumplicidade estabelecida entre as escolas de natação infantil e seus respectivos quadro docente, de atribuírem ao lúdico características eminentemente positivas como: interessantes, agradáveis, prazerosas, criativas, autônomas, voluntárias e livres.

Em última instância, afirmar o lúdico seria garantir uma extensão de qualidades humanas altamente desejáveis ajudando a esculpir um ser humano mais autônomo, portanto, livre, criativo e capacitado para tomar as próprias decisões no cotidiano.

[…] “Ou isso ou aquilo” … mas afinal, de que lúdico estamos falando? Ou melhor, que lúdico circunscreve o discurso das escolas de natação e de seus professores perante a faixa etária em discussão, a infância?

Outra constatação importante é a de que, apesar de o lúdico ser um termo bastante inflacionado, prevalece na produção que tematiza sua relação com o aprendizado da natação pela criança no transcorrer da infância, à quase completa ausência de preocupação em precisar o significado com que se usa essa expressão. Que lúdico então é esse que repentinamente fez acento no âmbito pedagógico, que circunscreve toda as formas de utilização do meio líquido, portanto, de práticas aquáticas apontadas para a infância?

Não se trata de definir ou conceituar o lúdico na infância, restringindo sua amplitude e penetração, com o propósito de distingui-lo de um outro possível lúdico. Quer dizer, demarcar a existência de um lúdico na infância e outro, fora dela. Seria uma atitude muito pretensiosa e pouco eficaz pois, como argumenta Santin (1994, apud Bracht, 2003), definir ou conceituar a ludicidade torna-se inviável porque não existem atividades específicas de brincar, não há o mundo do brinquedo como algo definitivamente dado.  “[…] Não há como insistir em querer formar uma compreensão inteligível de ludicidade, porque ela a empobrece e, talvez, a negue” (p.161).

Por outro lado, o sentido polissêmico conferido ao lúdico dentro do seu campo semântico, torna imprescindível caracterizar o “modo lúdico”[1] de intervenção na infância, já que, comumente, se pensa que uma atividade lúdica é, prioritariamente, uma atividade divertida para distrair e recrear. A infância não pode ser o espaço inominável da diversão, apenas pela consideração de que a criança precisa brincar. Reconhecidamente “brincar é o trabalho da criança”! Por isso mesmo, brincar na infância é uma coisa “séria” e assim deve continuar a ser entendido. A infância é, sem dúvida, o apogeu da atividade lúdica, a pátria do brincar. No entanto, é importante lembrar que toda brincadeira, embora seja uma atividade livre e espontânea da criança, não é natural; ninguém nasce sabendo brincar (mesmo porque sempre se brinca de uma determinada maneira!); aprende-se em função do contato com a cultura. Por isso é tão importante considerar a brincadeira como algo que merece atenção, planejamento e acompanhamento por parte do professor. No transcorrer da infância e, portanto, para criança, pode ser qualquer jogo, brinquedo ou brincadeira. Só não pode ser de qualquer jeito! Logo, não pode ser qualquer lúdico.

Não pode, por exemplo, ser o lúdico de Johan Huizinga[2] já que, no caminhar de suas discussões, o lúdico aparece preso à palavra jogo no sentido de “regras”. Na faixa etária em discussão, um dos principais elementos que caracteriza o desenvolvimento infantil é o simbolismo e este, por sua vez, é identificado pela ausência de regras como condição para se manifestar e mesmo, para assegurar sua existência. Tal como afirma Piaget (1953/2014, p.302), […] “no nível do jogo simbólico, qualquer coisa pode ser transformada pela imaginação, não importa o quê; o jogo não consiste então em se adaptar ao real, mas em submeter o real

à satisfação das necessidades do momento”, portanto, não há sentido em se falar de uma submissão às regras.

Não pode ser também, o lúdico caracterizado pela “livre escolha”. Do ponto de vista evolutivo, especificamente do desenvolvimento cognitivo, a possibilidade de escolha entre o “certo e o errado”, logo, o que é bom e o que não é, advém do uso da razão. A razão, tomada como condição para compreender e julgar, manifesta-se no estádio[3] operatório concreto do desenvolvimento, por volta dos 9 anos de idade (Piaget, 1994) quando a criança se torna capaz de pensar (ação interiorizada) suas condutas de forma reversível. Grosso modo, somente a partir dessa faixa etária a criança tornar-se apta para fazer escolhas e, portanto, tomar decisões mais coerentes no contexto.

A “livre escolha” do Homo Ludens do filósofo e historiador Johan Huizinga diverge também do desenvolvimento moral (Duska & Whelan, 1994) e em específico, da construção do juízo de valor[4], constatando-se total ausência de autonomia na infância para decisões dessa natureza. Através de uma extensa pesquisa sobre o desenvolvimento do Juízo Moral, Piaget (1994), conclui que a moral não se resume a interiorização passiva de valores, princípios e regras. Valendo-se da evolução da prática e consciência das regras, Piaget (1994) testemunha que a criança de 0 a 7 anos de idade[5] não segue regras coletivas, tornando possível a ele concluir, que as etapas do desenvolvimento moral seguiriam as mesmas etapas de construção/entendimento das regras. Apoiado nessa premissa, propõe três estádios para o desenvolvimento moral: anomia, heteronomia e autonomia. Na anomia, a criança ainda não penetrou no universo moral. Antes dos 04 anos de idade, as regras não estão associadas a valores como bem/mal, certo/errado. São apenas coisas que se deve fazer. Por volta dos 04 anos de idade, já concebe que ações deve ou não realizar. As regras já apontam para ações/condutas boas ou más.

No estádio da heteronomia que se inicia a partir dos 6 anos de idade, a criança interpreta a regra ao pé da letra. A criança prende-se às regras por não conceber

o princípio moral, privilegiando as consequências da ação e não a intenção. As regras são entendidas como algo sagrado e imutável. Portanto, do ponto de vista da legitimidade das regras, o moralmente correto é obedecer às regras que foram impostas pelas autoridades legítimas, os pais.

Por volta dos 8 anos de idade tem início o estádio da autonomia, no qual a criança começa a ter compreensão das regras, passando a julgar a partir de princípios sem obediência estrita às regras. Para julgar moralmente um fato e/ou uma conduta, dispõe em equação a “intencionalidade” das ações e o “princípio da igualdade”, como critérios necessários para conduzir uma solução/resposta.

Considerando que a noção de “reciprocidade”[6] é construída aos 7 anos de idade fruto de construções endógenas desencadeadas pela interação com o meio social (Piaget, 1994), na moral heterônoma estabelece-se relações assimétricas na qual uns mandam e outros obedecem e, em contrapartida, na moral autônoma estabelece-se relações simétricas baseadas na reciprocidade e na cooperação. Somente a partir dos 11 anos de idade, as regras são entendidas como mútuos acordos entre os pares e passíveis de modificação após submissão à apreciação e aceitação dos outros.

Infere-se que na faixa etária compreendida entre de 0 a 6 anos de idade prevalece a indiferença às regras (anomia) pela criança ou, ao contrário, em razão da faixa etária a ser considerada, à obediência a elas (heteronomia), fazendo-a compulsivamente seguir o que é imposto pelos pais. Dessa forma, aprender a nadar necessariamente não faz parte do repertório de sua “livre escolha”, mas sim uma imposição, uma regra (norma sociofamiliar) estabelecida pelos pais. Desta feita, não há nada de lúdico nisso também!

Finalmente, Huizinga (1980) caracteriza o lúdico como sendo uma atividade (jogo) desinteressada, exterior a vida real e que provoca evasão (da realidade).

O adjetivo “desinteressada” conforme expressado por Huizinga (1980) mostra o sentido do jogo como uma atividade autotélica, isto é, uma atividade que não é utilitária e que tem seu objetivo ou um fim em si mesma. Algo como jogar pelo prazer de jogar!

Considerando o jogo como uma das condutas fundamentais da criança, Piaget (1953/2014) reafirma seu significado funcional e o seu valor durante todo o processo do desenvolvimento infantil, notadamente aos aspectos físico e mental. Dessa forma, o jogo não é absolutamente na criança o que ele é no adulto, um simples lazer ou descanso ou então, uma espécie de conduta de pouca importância, de baixa tensão psicológica, ali onde o trabalho e o esforço não são possíveis.

Se, no entanto, o jogo no adulto é relativamente fácil de distinguir daquilo que não é jogo, do que é trabalho, do que é obrigação de qualquer gênero, na criança a distinção do que é ou não jogo é infinitamente mais delicada. Quais são então os limites do jogo ou como caracterizar o que é o jogo na criança?

Para responder a esta questão, estabelecendo os limites e caracterização dos jogos, Piaget (1953/2014) extrai da literatura existente os principais critérios a que os psicólogos recorreram para delimitar as funções desempenhadas pelo jogo, defrontando-se com o critério clássico; o primeiro deles: o do jogo como uma atividade desinteressada, uma atividade autotélica.

Ao referir-se […] a uma criança que corre, corre apenas por correr, não tendo outra finalidade senão o exercício dessa atividade, sem um fim extrínseco, ao passo que, se ela corre para atingir um objetivo qualquer, para procurar alguma coisa, para se juntar a alguém não se trata mais de jogo? pergunta Piaget (1953/2014, p. 98) Da mesma forma, quando uma criança se interessa por um fenômeno que ela acaba de descobrir, como por exemplo, ao constatar que um objeto diante de uma luz projeta sombras sobre uma superfície e ela se diverte em fazer essas sombras, em interpor sua mão para produzir uma sombra com a própria mão, será esta uma atividade que não tem outro fim senão o seu próprio exercício, embora ensinando alguma coisa à criança, pelo menos em certos momentos? Ou podemos dizer, prossegue Piaget, que há uma atividade de pesquisa, um esforço para compreender, uma adaptação ao real e, por conseguinte, não é uma conduta lúdica?

Frente a impasses dessa natureza, Piaget (1953/2014) percebe que procurar uma definição nominal, ou seja, uma definição do problema do jogo com relação ao que não é o jogo, aponta-se para um problema central no ponto de vista dos mecanismos em ação, já que o jogo envolve todos os “mecanismos do pensamento da criança e constitui alguma coisa de muito complexo que não é afetividade pura, mas afetividade e pensamento de uma só vez” (p. 295).

Logo, presume ele, um critério adotado pode ser válido para uma coisa, mas nem tanto para outra como poderia parecer, já que há de se considerar também todo tipo de situações intermediárias onde às vezes a criança brinca, às vezes a criança aprende. Em razão dos fatos, conclui que somente as condutas de um certo nível de desenvolvimento podem comportar um fim extrínseco, permitindo que possamos opô-las ao jogo. O critério do autotelismo permanece, pois, muito vago no detalhe e, portanto, difícil de ser admitido como verdadeiro na faixa etária em questão. Mais uma vez, o lúdico como uma atividade (jogo) desinteressada, não se sustenta pelo critério de autotelismo no transcorrer da infância.

Mais uma vez, o conjunto dos argumentos levantados permitem inferir que o “lúdico” pleiteado pelas escolas de natação e subscrito no planejamento dos professores, não corresponde em identidade com a faixa etária em discussão, a infância. A observação da prática cotidiana docente fornece pistas que identificam um “lúdico” pavimentado no lazer, tomado, apenas, pelo seu sentido de “positividade”, isto é, associado ao prazeroso (Bracht, 2003). No entanto, essa forma de institucionalização do lazer fortalece a dicotomia entre fazer (produtivo) e não-fazer (improdutivo), projetando o lúdico como oposição à seriedade, ao comprometimento. Dessa forma, a única liberdade possível para o lúdico fica sendo aquela da ausência do trabalho e a desobrigação momentânea de não cumprir obrigações.

Ora, ao apreender o lúdico como materializado no lazer, por acaso não residiria aí uma das distorções já apontadas ao lúdico na infância, quando o professor se dirige a turma dizendo: “se fizerem tudo certinho, ao final da aula eu deixo brincar”?

Uma outra significação mais restrita ao lúdico no âmbito do lazer, é a de atribuir-lhe paridade as atividades de jogo e brincadeira. Noutras palavras, um lúdico de espírito recreativo pautado no divertimento, traduzido pela possibilidade de jogar e de brincar. Nessa perspectiva, há uma racionalização do tempo, objetivando otimizar a produtividade. Quer dizer, o tempo de descanso necessário à recomposição psicossomática para o trabalho[7], é associado como momento do lúdico no qual é consentido poder jogar e brincar.

Dentro de uma escola de natação infantil, na dinâmica de um dia de trabalho, por exemplo, a apreensão do lúdico no contexto do jogo ou do brincar dá-se, como bem caracterizou Pimentel & Pimentel (2009), através de um “discurso disciplinar do lazer”. Trata-se de uma necessidade de dar conta do lúdico, em espaço organizado e definido, dentro dessa área disciplinar (sistematizada) que estaria, como possibilidade, apagando o lúdico em seu sentido desorganizador (livre), destituído de controle (sem regras), devido a uma ânsia por visualizá-lo, mas não permitindo a ele se dar a ver. Institucionalmente organizadas, então, nas “atividades de lazer”(lúdicas) não só o espaço é delimitado como o tempo é controlado e os jogos/brincadeiras dados/conduzidos pelos organizadores. Desta feita, o jogo e o brincar como iniciativa destituída de regras e, portanto, espontâneo, criativo, prazeroso e que contextualiza o lúdico, inexiste. Novamente, uma forma equivocada ou quem sabe ingênua, de acreditar que a instrução intercalada por momentos de distração na infância anda de mãos dadas, auxiliando a aprendizagem.

 

(… continua na próxima edição)

 

[1]Originalmente, a expressão “modo lúdico” é uma variável analítica cunhada por Victor Pavia, que tenta examinar a atitude dos sujeitos quando jogam (cf. Pavia, Victor (2006). Jugar de un modo lúdico. El juego desde la perspectiva del jogador. Buenos Aires: Noveduc.)

[2]A opção de argumentação a partir do lúdico descrito/proposto por Johan Huizinga, dá-se pelo fato de ser um dos autores mais conhecidos (popular) no âmbito da educação física.

[3] Piaget utiliza a palavra “estádio” para referir-se ao espaço de tempo demandado para construção das estruturas que caracterizam etapas ou períodos do desenvolvimento cognitivo.

[4]Cf. La Taille, Yves de. (2006). Moral e Ética – Dimensões Intelectuais e Afetivas. Porto Alegre: Artmed.

[5]A faixa etária nas pesquisas produzidas por Piaget deve ser tomada como referência.

[6]Cf. Battro, A, 1978.

[7]Nesse caso, o trabalho deve ser visto como ato de aprender, isto é, algo penoso, cansativo e que requer atenção dirigida.

 

Prof. Dr. Leonardo Graffius Damasceno

32 anos atuando no ensino superior – graduação e pós graduação e, desde 1980 atuando na área aquática.

Licenciatura Plena em Educação Física/Pós Graduação em Educação e Reeducação Psicomotora/Pós-Graduação em Estimulação Essencial ao Desenvolvimento/Pós-Graduação em Educação/ Mestrado em Educação Especial/Doutorado em Psicologia do Desenvolvimento/Autor de livros e artigos envolvendo as seguintes temáticas: Natação para Bebês e Infantil; Educação Física Pré-Escolar e Escolar/Jogos e Recreação/Psicomotricidade e Desenvolvimento/Natação Síndrome de Down e TDAH/Aprendizagem da natação e desenvolvimento cognitivo entre outras temáticas. Pesquisa a interrelação da aprendizagem da natação com o desenvolvimento cognitivo e motor de crianças típicas e atípicas (neurodesenvolvimento) sustentado na epistemologia genética de Jean Piaget.

WhatsApp
Telegram
LinkedIn
Twitter
Facebook
Pinterest
plugins premium WordPress

Natação Criativa é Para Todos

Deixe seus dados para receber nossas atualizações.

saiba-mais-form

Tem alguma dúvida?
Fale conosco

Você deseja receber ofertas e novidades ?

newsletter-form-pop