O lúdico nas aulas de natação infantil: (…) afinal, de que lúdico estamos falando? – Parte 3 (final)

Blog Natação Criativa – parte 3 (final).

 

 

O lúdico nas aulas de natação infantil: (…) afinal, de que lúdico estamos falando?

Prof. Dr. Leonardo Graffius Damasceno

 

3ª parte… continuação.

 

Perante a ausência de uma caracterização hegemônica ao lúdico na infância, parece possível inferir que ao forjar uma identidade para o lúdico, elaborando artificialmente seu sentido/significado ao atrelá-lo ao discurso disciplinado do lazer, as escolas de natação infantil, num tom de modernidade, fazem seu próprio “self”, isto é, duplicam sua própria identidade constituindo-se num espaço não só para se aprender a nadar, como também um local para jogar e brincar, portanto, um “espaço lúdico”. Numa palavra, a piscina não é mais um lugar “para nadar”, mas um espaço “para recrear dentro d’água”, também! Em detrimento dessa nova possibilidade que vêm instituindo-se pouco a pouco como “prática pedagógica”, os programas de aprendizagem propostos ficam então customizados por uma “concepção recreativa de aprendizagem”, justificada pelo prazer proporcionado pela própria atividade na água e que utilizam toda sorte de jogos e brincadeiras, principalmente, que possibilitem o entretenimento da criança.

Se esse objetivo está oculto na proposta metodológica ensejada pelas escolas de natação infantil, certamente encontra-se impresso no planejamento de seus professores. Ao abordar o lúdico de maneira funcionalista, é possível constatar na fluidez dos jogos e brincadeiras administradas, manifestações positivas de contentamento e alegria pelas crianças, como resposta suficiente não só para os professores estarem convencidos sobre a importância do lúdico como simples recurso metodológico, mas também por considerarem que seus efeitos proporcionam uma característica diferente e particular em cada aula ministrada. Como já referido, o termo lúdico passa a ser definidor do significado atribuído à expressão boa aula, divertida, legal.

O espírito hedonista reina absoluto assegurado por uma dimensão funcionalista do lúdico, sem que o uso do jogo e do brincar, por exemplo, sejam submetidos a algumas reflexões prévias que assegurem ao desenvolvimento infantil, estímulos que sobrepassem as necessidades simbólicas reinantes nesse estádio. Relativo ao jogo, uma série de objetivos específicos, tais como os propostos por Ortega, Canal e Campos (2015) podem ser definidos por meio de perguntas, tais como: o que esse jogo favorece em atitudes e habilidades para convivência social e construção do conhecimento? Que estruturas mentais ele aciona? A que aspectos do programa pedagógico esse jogo se liga? Poderá ele favorecer aos jogadores oportunidades de uma ação construtiva e autônoma, ao se envolverem em uma atividade que lhes ofereça sentido e contexto? Relativo as brincadeiras propostas, são pertinentes questões como: as formas de brincadeiras inserem-se num escalonamento evolutivo? Como se configura a transição ou progressão de uma forma para outra? Como respeitar as formas de brincar e ao mesmo tempo torná-las parte do projeto pedagógico? Seria mais prudente permitir que elas ocorram espontaneamente?

Em outras palavras, num quadro de transição em que as escolas de natação infantil parecem buscar uma adequação pedagógica, frente às exigências contemporâneas constituídas por novas demandas socioeconômicas e pelo “controle de fora da indústria cultural” (cf. Bracht, 2003), o “lúdico” passa a se caracterizar, apenas, como um elemento instrumentalizador de jogos e brincadeiras. Modifica-se, então, a identidade do lúdico como sendo uma estratégia ou recurso no processo didático-pedagógico, tornando-o algo controlável, manipulável e, dessa forma, podendo ser utilizado de acordo com os interesses do professor de natação infantil, quando aquele se faz necessário.

Na contramão dos fatos, tal como afirma Brougère (1998), é necessário enfatizar que o lúdico alcança objetivos, mas não se presta a atingir um objetivo em específico a priori e, sim, é possível com sua inserção alcançar aprendizagens essenciais com sua vivência sem, contudo, possuir finalidade imediata.

Que fique claro nesse momento, que a crítica levantada não se refere as adequações no planejamento das atividades ofertadas, que as escolas de natação vêm implementando em razão dos novos estilos de vida impostos pela sociedade contemporânea. É incontestável que em sintonia com o progresso, principalmente nas grandes cidades, existiu uma grande alteração na vida das famílias refletindo-se na diminuição do tempo reservado pelos pais para proporcionar tempo de atividades de lazer às crianças, oferecendo-lhes cada vez menos oportunidades de jogar e brincar.

Vista como uma empresa prestadora de serviços, a escola de natação infantil passou a ser uma das alternativas para suprir essas necessidades, ajustando-se a uma nova demanda com exigências específicas. Logo, esse não é o foco da crítica!

Quer-se destacar as impropriedades atribuídas ao lúdico que vêm sendo instrumentalizado para a infância no contexto das atividades aquáticas, cujas características denotam ter sido extraídas do conceito do lazer. Um lúdico de características identitárias histórico-culturais, quer dizer, um lúdico apreendido como transmissão cultural, notadamente àquele acimentado no jogo e no brinquedo como faz Walter Benjamim em seu livro Reflexões: a criança, o brinquedo e a educação; ou como faz Tizuko Murchida Kichimoto, em Jogos Infantis, ou ainda como fez Giles Brugère, em Jogo e Educação, trabalhando sociologicamente o conceito de jogo.

Nesse sentido, parece mais adequado no âmbito das atividades aquáticas infantil fazer-se referência a um “comportamento lúdico” e instituir-se esse termo como resposta às atividades prazerosas, não racionalizadas, próprias aos jogos e brincadeiras que vêm sendo dinamizados nesse contexto. Em outras palavras, valer-se do jogo e do brincar com a clara intenção de recrear e divertir. Dessa forma, valer-se de um lúdico perspectivado no âmbito do lazer.

É importante nesse momento reafirmar, que se todo jogo e/ou brincadeira, embora seja uma atividade livre e espontânea da criança não é natural, quer dizer, ninguém nasce sabendo jogar e brincar e, portanto, esse aprendizado ocorre em razão do contato e/ou da relação da criança com a “cultura” (ambiente) em que está inserida, podemos caracterizar esse lúdico que vem sendo implementado/posto em prática, por um “lúdico como transmissão”.

Por outro lado, firmado na epistemologia genética de Jean Piaget, o “lúdico” na faixa etária em discussão (notadamente dos 2 aos 7 anos de idade em correspondência ao estádio pré-operatório no qual se destaca às construções simbólicas pela criança), deve ser apreendido como energética das ações e vinculado, portanto, à afetividade. Segundo Oliveira (2002), Piaget define afetividade incluindo nela não apenas os sentimentos e as emoções, mas também as tendências e as vontades, isto é, os fatores conativos e motivacionais. Apesar de distinguirem-se em razão de sua natureza diferente, as funções cognitivas e afetivas na conduta concreta do indivíduo são indissociáveis. Desse modo, segundo Piaget (1953/2014), é impossível encontrar condutas provenientes exclusivamente da afetividade sem elementos cognitivos, e vice-versa. As funções cognitivas corresponderiam às percepções, à inteligência prática ou sensório motora indo até a inteligência abstrata. As funções afetivas, como já referido, implicariam o interesse e a necessidade.

No entanto, Piaget (1953/2014) esclarece que a afetividade pode ser a causa de comportamentos, pode intervir sem cessar no funcionamento da inteligência, pode ser causa de acelerações ou de atrasos no desenvolvimento intelectual, contudo, não forma nem modifica as estruturas cognitivas. Se por um lado a afetividade impulsiona a ação, por outro ela nada seria sem as estruturas cognitivas, pois são elas que fornecem os meios para se atingir um fim.

Ao discorrer sobre a coordenação das ações simbólicas, sua evolução e conhecimento Piaget (apud Furth, 1995), percebe que existe uma “lógica” nas formas primordiais do desenvolvimento, mais especificamente na lógica das ações biológicas, dando-se conta que a ação tem um “significado” funcional, ela é teleonômica[1]. O organismo “conhece” algo acerca do ambiente e, assim, há uma correspondência (adaptação) entre os dois. Mas não pode haver uma correspondência sem uma coordenação ou corregulação. Essa se dá onde a Lógica e a Matemática entram no aspecto formal da ação biológica.

Há então uma linha reta entre a lógica da coordenação das ações geneticamente programadas e a lógica da coordenação das ações sensório-motora e, finalmente, dessas para a lógica operatória da coordenação das ações simbólicas. Como afirma Furth (1995), para Piaget as ações simbólicas das crianças no brinquedo/jogo e no pensamento, longe de serem sem lógica são, pelo contrário, o primeiro degrau para o uso da lógica nos símbolos.  As operações são assim, “as inter-relações endógenas, (isto é, derivadas de dentro) do conhecimento simbólico, e através delas, o conhecimento pode tornar-se reflexivo, plenamente comunicável, cientificamente objetivo, infinitamente aberto às novidades e construtor delas” (Furth, 1995, p. 125).

Como energética da ação vinculado à afetividade, o “lúdico como transformação”, dado ao seu caráter biológico e seu significado funcional como descrito, assemelha-se ser o mais apropriado para legitimar as ações na infância, contextualizadas pelas atividades aquáticas.

Que fique claro, portanto, que o lúdico não é uma “coisa”. Não é também um a priori, algo previamente dado, um conhecimento. Logo, não existe um jogo lúdico ou uma brincadeira lúdica por essência! Caracterizado como energética da afetividade e projetado nas ações simbólicas na faixa etária em discussão, o lúdico é um “modo” que transcende o real. Neste caso, o jogo e a brincadeira devem ser considerados como “forma” (estrutural) de manifestação e, o lúdico, o “modo” (funcional) de vivê-las, como descreve Pavia (2006).

Não existe, portanto, um “método lúdico” para se ensinar. Pode sim, existir um “modo lúdico” para ensinar, tal como o proposto por Enrique Muñhoz Herrera em seu livro Modelo Narrativo Lúdico – cuentos motores acuáticos. Do ponto de vista pedagógico então, a atitude de ensinar pode estar revestida, na melhor das hipóteses, por uma “intenção lúdica”.

Finalmente, sobre a prática cotidiana das escolas de natação infantil e dos professores que nela se inserem é possível afirmar, mais uma vez, que “pode ser qualquer jogo, qualquer brincadeira. Só não pode ser de qualquer jeito”!

 

[1]Teleonômica diz respeito que a existência de uma estrutura ou função em um organismo, deve-se às vantagens seletivas que ela proporciona.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

ABERASTURY, A. (1992). A criança e seus jogos. Porto Alegre: Artes Médicas.

BRACHT, Valter (2003). Educação física escolar e lazer in: Lazer, recreação e educação física. Org. Christianne L. G. Werneck e Helder F. Issayama. Belo Horizonte: Autêntica (p 147-172).

 

BROUGÈRE, G. (1992). Jogo e educação. Porto Alegre: Artes Médicas.

CARMO JUNIOR, Wilson do (1999).  A brincadeira de corpo e alma numa escola sem fim: reflexões sobre o belo e o lúdico no ato de aprender. Motriz, vol. 1, n. 1, 15 -24, junho.

DIAS, Isabel Simões (2005). O lúdico. Educação e Comunicação, n.8, pp. 121-133.

 

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LA TAILLE, Y. (2006). Moral e Ética: dimensões intelectuais e afetivas. São Paulo: Artmed Editora S.A.

 

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Prof. Dr. Leonardo Graffius Damasceno

32 anos atuando no ensino superior – graduação e pós graduação e, desde 1980 atuando na área aquática.

Licenciatura Plena em Educação Física/Pós Graduação em Educação e Reeducação Psicomotora/Pós-Graduação em Estimulação Essencial ao Desenvolvimento/Pós-Graduação em Educação/ Mestrado em Educação Especial/Doutorado em Psicologia do Desenvolvimento/Autor de livros e artigos envolvendo as seguintes temáticas: Natação para Bebês e Infantil; Educação Física Pré-Escolar e Escolar/Jogos e Recreação/Psicomotricidade e Desenvolvimento/Natação Síndrome de Down e TDAH/Aprendizagem da natação e desenvolvimento cognitivo entre outras temáticas. Pesquisa a interrelação da aprendizagem da natação com o desenvolvimento cognitivo e motor de crianças típicas e atípicas (neurodesenvolvimento) sustentado na epistemologia genética de Jean Piaget.

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